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07-01-2025

A outra face da uberização: o trabalho em cozinhas para delivery sob o capitalismo periférico financeirizado

Júlia Zenni Lodetti | UFSC, Labor Movens

#AlbaSudDivulga um excerto da tese de mestrado de Julia Zenni Lodetti, originalmente publicada na Labor Movens, sobre o trabalho gerado nas cozinhas que trabalham para aplicações de entrega, incluindo as dark kitchens. Um trabalho invisibilizado, precário e com uma clara divisão sexual do trabalho


Crédito Fotografía: Thiago Gadelha

O trabalho em cozinhas de restaurantes que realizam entregas por aplicativos não foi objeto escolhido ao acaso. Foram as curiosidades iniciais sobre as condições de trabalho de entregadores e a percepção da significativa quantidade de pesquisas sobre esse setor que levaram à busca por outro grupo de trabalhadores/as que tivessem relação com o trabalho uberizado e fossem tão cotidianos quanto. O trabalho em cozinhas se enquadrou, então, de forma ambígua na motivação inicial. Ambígua pois: é um trabalho essencial e presente no cotidiano da produção da vida, especialmente em cidades, assim como os entregadores por aplicativo o são, mas, diferentemente destes, não pode ser caracterizado como visível. É um trabalho invisível no sentido literal, pois é, em geral, realizado em espaços fechados, sobretudo nas cozinhas de preparo para delivery, mas também o é no sentido figurado, pois é uma atividade que não parece incitar comoção e engajamento de nenhuma parte, sendo praticamente ignorada, ou até mesmo apagada.

Bianca Briguglio (2022) nos apresenta, dentre outros resultados de sua pesquisa, a maior presença de mulheres nas cozinhas e posições menos renomadas. Ela evidenciou o processo em que quanto mais o ofício se profissionaliza, mais ele se masculiniza, o que reforça a concepção construída de que as mulheres têm qualidades e dons naturais, instintivos em relação ao cozinhar, e não qualificações profissionais (Hirata, 2009).

Sobre o caráter amador do trabalho feminino em cozinhas, em pesquisa de campo, a maioria das entrevistadas relataram aprender a cozinhar com a família, ou mais precisamente com as mães e/ou avós. Entretanto, esse contato inicial, muito familiar e afetuoso, com o ofício, não elimina a trajetória de capacitação e profissionalização dessas pessoas. Flora [1] relatou ter esse vínculo bastante relacionado ao seu passado e suas antecessoras, porém, deu igual ênfase aos diversos cursos que fez e, como é especial da qualificação como cozinheira/o, os lugares diversos em que trabalhou e se qualificou. Também segundo Briguglio (2022), o talento e o dom são constantemente usados para caracterizar o trabalho em cozinhas, tanto pelos/as próprios/as cozinheiros/as quanto por programas de televisão, por exemplo. Porém, ela revela como: “O dom, entretanto, oculta relações de gênero, classe e raça que engendram as relações de poder da nossa sociedade, naturalizando conhecimentos e saberes como algo com o qual a pessoa nasce e encobrindo as desigualdades sociais” (Briguglio, 2022:73).

Portanto, a divisão sexual do trabalho permite observar a dinâmica em que o trabalho feminino mantém-se no âmbito privado enquanto o masculino no público e a naturalização do trabalho feminino, que são traços marcantes do trabalho em cozinhas. Da mesma forma, permite compreender tanto a separação quanto a hierarquização (Kergoat, 2009) de funções “femininas” e “masculinas” no trabalho em cozinhas. Há tanto a designação do papel social da mulher e do homem no trabalho quanto a implicação de um valor social maior aos trabalhos desempenhados por homens. Scavone (2008) descreve a heteronormatividade da relação entre masculino e feminino, ressaltando que figura como algo já estabelecido e imperceptível. Molinier e Welzer-Lang (2009) apontam a construção da feminilidade do contexto do trabalho pela seguinte dualidade: para buscar reconhecimento em sua carreira, performam a virilidade típica da construção da masculinidade e depreciativa do feminino; e ao mesmo passo, suas competências são lidas como dons e qualidades inerentes à natureza feminina. No contexto de trabalho dentro de cozinhas de restaurantes profissionais, há um ambiente que enaltece o que é tido dentro da construção heternormativa hegemônica como masculino, ao qual as mulheres se veem forçadas a se adaptar (Briguglio, 2022).

Credito: Hailey Tong

Essas distinções são consolidadas através da legitimidade que foi construída historicamente acerca da associação dos papéis sociais ao sexo biológico e a natureza de cada um deles. Kergoat (2009) problematiza a confusão que se faz dos grupos sociais com a categoria biológica, ressaltando que as relações sociais de sexo dizem respeito singularmente aos primeiros e suas tensões antagônicas: “as diferenças constatadas entre as atividades dos homens e das mulheres são construções sociais, e não provenientes de uma causalidade biológica” (Kergoat, 2009:71).

Elisabeth Lobo(2011) vai além de apenas denunciar o caráter falacioso tanto do aspecto natural do trabalho de reprodução feito por mulheres, quanto da suposta facilidade das suas atividades, e caracteriza como a feminização e desqualificação de setores e atividades são tidos como consequência um do outro. Ela caracteriza como a maior presença de mulheres na indústria passa a ser vista como uma simplificação do trabalho operário, visto que as mulheres seriam, segundo essa ótica, trabalhadoras inerentemente desqualificadas. Nas palavras da autora: “a questão [...] está no fato de que o sexo daqueles(as) que realizam as tarefas, mais do que o conteúdo da tarefa, concorre para identificar tarefas qualificadas ou não qualificadas” (Lobo, 2011:158).

Além disso, o trabalho na cozinha entra num leque de saberes aproveitados das experiências femininas no âmbito doméstico transmutados para o mercado de trabalho quando este e a força de trabalho feminina passaram a ter uma relação de mútua necessidade. A respeito desse transbordamento das funções femininas pelas fronteiras do âmbito privado ao público, Lapa (2020:259) desenvolve: “esta mão de obra feminina como também dotada de um tipo específico de savoir faire derivado de sua experiência na produção doméstica”. Santana (2010:101) aborda essa imbricação entre o cozinhar profissional e doméstico, ressaltando o que chama de “domesticidade do labor culinário”, sendo o ambiente de trabalho também presente no lar. Aponta a culinária como herança culturalmente feminina que “replica as posições dos gêneros na convivência social desta cozinha, nas divisões dos espaços de labor e nas representações de poder” (Santana, 2010:102).

Trabalho feminino e precariedade

São diversos/as os/as autores/as que concluem sobre a relação próxima, se não dependente, entre trabalho feminino e precariedade (Harvey, 1992; Lobo, 2011; Abílio, 2014; Lapa, 2018; Druck, 2023). Há, ao mesmo tempo, a tendência do trabalho feminino ser o mais afetado pelas transformações que tornam mais precárias as condições de trabalho e emprego, e a fundamentação dessa precariedade que se espalha para outros trabalhos justamente no que historicamente caracterizou o trabalho feminino. Abílio (2014:88) destaca como “características que hoje definem a flexibilização há muito são constitutivas das ocupações desempenhadas pelas mulheres” e enfatiza como a indefinição do trabalho como trabalho é algo que é característico do trabalho feminino e se reproduz em movimentos políticos de flexibilização do trabalho.

Lobo (2011) centraliza a marginalização do trabalho feminino como próprio da lógica capitalista, tendo suas raízes no descarte das mulheres como sujeito social que é perpetuado pelo discurso econômico, cujo tom é elaborado para soar geral, sexualmente cego. Uma das transformações do trabalho elencadas por Harvey quando analisando a acumulação flexível como novo modo de regulação do capital diz respeito ao trabalho das mulheres “que acessam o mercado de trabalho através de empregos precários, em tempo parcial, subcontratadas, e substituindo os homens, com salários mais baixos e expostas à maior rotatividade e insegurança” (Druck, 2023:486).

É também o trabalho precário que se estabelece como porta de entrada das mulheres para o mercado de trabalho, inclusive pela flexibilidade contida nele possibilitar que estas trabalhadoras também atendam às demandas do trabalho doméstico. Em uma percepção de classe, Abílio (2014:86-87) também compreende como “as mulheres das famílias de baixa renda assumem o sustento familiar no papel de “viradoras”, desempenhando as mais diversas ocupações temporárias, informais e domiciliares — de “bicos” e trabalhos domésticos a inscrição em programas sociais.”

Credito: Fabiane de Paula

Isso se relaciona com o fato de que, em diversas atividades, esse processo de feminização de setores reflete um transbordamento de tarefas domésticas, que são historicamente realizadas por mulheres, como a limpeza e a cozinha. Em especial, as mulheres negras acabam por ocupar estas posições baseadas naquilo que Lélia Gonzalez (2020:44) nomeou de “ocupações refúgio”, cuja remuneração é, na vasta maioria das vezes, a mais baixa. Similarmente, Lapa (2018:274) orienta que no “contexto de reorganização neoliberal do trabalho, há atividades confiadas maciçamente às mulheres racializadas e empobrecidas com base não em uma “natureza”, mas em um conjunto de leis e instituições que as impele e orienta para os trabalhos onde são necessárias.” O que Lobo (2011) e outras autoras que escrevem sobre a divisão sexual do trabalho ressaltam é que esse processo de feminização de setores e tarefas é utilizado como mais uma forma de baratear os custos de produção com força de trabalho, reproduzindo segregações e hierarquizações baseando-se em práticas construídas social e historicamente com o objetivo de dominar e lucrar cada vez mais.

A uberização do trabalho em cozinhas

Nos debates públicos e acadêmicos sobre a plataformização do trabalho e os aplicativos de entrega, desde as publicações e discursos até à composição imagética da discussão remete aos entregadores e suas mochilas. Sejam eles de motocicleta ou bicicleta, manifestações, coletivos, pronunciamentos que vão até o presidente da república, e decisões significativas do corpo jurídico nacional, são todos voltados para a entrega. Em outro texto elaborado para o blog do Labor Movens em parceria com Briguglio, comentamos a esse respeito: “Trabalhadoras e trabalhadores que atuam em cozinhas de restaurantes, grandes ou pequenos, e quem realiza entregas por aplicativos de delivery são praticamente passíveis de esquecimento total. O aplicativo de entregas – veja bem: não se trata de um aplicativo de alimentação, mas de entregas – representa a fetichização total de um serviço de alimentação, na qual a comida aparece pronta quase como mágica. Afinal, quando a refeição é comprada no aplicativo, não há contato algum com o setor da produção. No máximo o cliente encontra o entregador – e olhe lá” (Briguglio & Lodetti, 2024).

Esse processo se relaciona diretamente com a degradação do ofício da qual discutia Braverman (1980). Ele destaca, muito antes de qualquer advento de aplicativo ou plataforma, outro fator pertinente à análise sobre o trabalho de preparo de comidas no contexto de capital monopolista: a destruição do ofício. Citando a então nova tecnologia dos alimentos congelados, comenta: “cozinheiros chefs e cozinheiros de graus superiores, a mais elevada perícia da categoria, dão exemplo esclarecedor da maneira pela qual um ofício antigo e valioso está sendo destruído até mesmo em sua última cidadela, luxo e bom gosto” (Braverman, 1980:310).

É evidente que os “cozinheiros chefes” ou “de graus superiores” aos quais ele alude não são as mesmas pessoas das quais me refiro na pesquisa quando busco analisar e conversar com trabalhadores/as de cozinhas vinculadas a aplicativos. Porém, acredito ser ímpar a contribuição do autor ao entendimento de que o capital monopolista e o modo de controle e organização do trabalho que se impõe com ele destroem os ofícios e os destituem de seu conteúdo (Braverman, 1980), algo que estaria mais atual precisamente com a uberização. O cozinhar sob a lógica da plataforma é muitas vezes “esvaziado de seu valor cultural e afetivo” (Briguglio & Lodetti, 2024) por estar interposto por relações de mercado, portanto: na lógica de exploração do capital, as cozinhas profissionais tornam-se espaços de produção que também são pautados por critérios como efetividade, eficácia e a dinâmica de reduzir custos para aumentar lucro – o que frequentemente se traduz na redução do quadro de profissionais e superexploração daqueles que permanecem (Briguglio & Lodetti, 2024).

É nesse tipo de exigência imposta pelas formas de organização do trabalho e acumulação de capital que o formato de cozinhas para delivery conhecido como dark kitchens emergem como um modelo “ideal”. Vistas como uma eficiente e positiva tendência de mercado, incentivada como um modelo a ser seguido, essas cozinhas funcionam de maneira exemplar sob os moldes da maximização de lucro e redução de custos: não existe espaço para clientela, é apenas a cozinha, onde as refeições são produzidas, muitas vezes mais de uma marca ou tipo de culinária opera no mesmo local — que é, em geral, alugado. São diversos os formatos que as dark kitchens assumem, mas uma característica lhes é comum: “elas dependem do serviço de entrega, o famoso delivery, que leva a refeição diretamente para o cliente. A separação entre a cozinha e o cliente aumenta. Quem consome a comida é totalmente apartado de seu processo de produção” (Briguglio & Lodetti, 2024).

O trabalho no setor de alimentação é componente do trabalho no turismo, portanto, sua análise numa perspectiva crítica e historicamente contextualizada mostra-se relevante. Por isso, buscou-se demonstrar neste texto como o trabalho em cozinhas, com suas inúmeras singularidades, representa um setor que ilustra fielmente o que se compreende dos estudos da sociologia do trabalho, com ênfase no processo e condições de trabalho, e a teorização da divisão sexual do trabalho.

 

 

Notas:
[1] Flora, 61 anos, natural de Pelotas, Rio Grande do Sul. Cozinheira e dona de restaurante de marmitas. (Os nomes foram alterados para preservar a identidade das/os entrevistadas/os).
Este texto foi originalmente publicado no blogue Labor Movens
O presente texto representa um resumo de parte da minha pesquisa de mestrado em Sociologia no Programa de Pós-Graduação em Sociologia e Ciência Política da Universidade Federal de Santa Catarina. A pesquisa está em andamento e o que foi selecionado para esta participação representa a fração da pesquisa que mais conversa com a proposta desse grupo: as condições de trabalho no turismo e seus setores adjacentes. Mais especificamente, trato das elaborações feitas em relação à divisão sexual do trabalho no trabalho em cozinhas que realizam entrega por aplicativo.
Referências Bibliográficas
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Braverman, Harry (1980). Parte I: capítulos 4. A gerência científica e 5. Principais efeitos da gerência científica. En Trabalho e capital monopolista: a degradação do trabalho no século XX. Rio de Janeiro: ZAHAR Editores.
Briguglio, Bianca (2022). Cozinha é lugar de mulher? A divisão sexual do trabalho em cozinhas profissionais. Marília: Lutas Anticapital.
Briguglio, Bianca; Lodetti, Júlia Zenni (2024) Aos e às ninguéns que ainda cozinhamTextos para Debate. ABET.
Druck, Maria da Graça (2023). David Harvey: as teses sobre acumulação flexível, neoliberalismo e centralidade do trabalho. In: Oliveira, R., Ramalho, J. & Sanson, C. (Org.). Diálogos críticos: o pensamento estrangeiro e a sociologia do trabalho no brasil (pp. 473-498). São Paulo: Annablume.
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Lapa, Thaís de Souza (2018). Divisão sexual do trabalho sob a ordem neoliberal. Temáticas, 52 (26), pp. 247-284.
Lapa, Thaís de Souza (2020) O gênero do trabalho operário. Marília: Lutas Anticapital.
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