27-02-2025
Etnoturismo Indígena de Base Comunitária na Terra Indígena Coroa Vermelha
Aline Santos Bispo | Alicia Araújo da S. Costa | Pablo AntunhaUma análise etnográfica do etnoturismo indígena na Terra Indígena Coroa Vermelha sob a perspectiva do turismo de base comunitária evidencia o protagonismo das aldeias Pataxó através de projetos comunitários no contexto do turismo.
Crédito Fotografía: ASPECTUR.
A prática do turismo comunitário vem se tornando uma realidade cada vez mais presente nas comunidades tradicionais brasileiras, tornando-se uma atividade complementar que possui como princípios a autogestão, o associativismo ou cooperativismo, o compartilhamento de oportunidades e benefícios, o trabalho em equipe, a valorização da cultura local e, principalmente, o protagonismo das comunidades locais na gestão da atividade. Neste contexto, o artigo, publicado em sua versão completa no Dossiê – Turismo de base comunitária em rede da Revista Latino-Americana de Turismo, analisa em que medida a atuação turística de aldeias Pataxó da Terra Indígena Coroa Vermelha (TICV), localizada no extremo sul da Bahia, se aproxima da modalidade do Turismo de Base Comunitária (TBC). Atualmente, das 15 aldeias localizadas na Terra Indígena, cerca de sete recebem visitantes. Dentre estas, o recorte da presente pesquisa considerou três aldeias praticantes da referida modalidade turística: a Reserva Pataxó da Jaqueira, a Aldea Nova Coroa e o Centro Cultural Txag’ru Mirawê.
Os dados etnográficos mobilizados são recorte de pesquisas etnográficas em andamento desde 2018 na TICV. A interpretação dos mesmos à luz do TBC demonstra a emergência de um Turismo Indígena de Base Comunitária na Terra Indígena. Autônomos e sustentáveis, estes projetos se constituem em uma ferramenta de atuação cultural e política das comunidades Pataxó, além de representarem a principal fonte de incremento da renda dessas comunidades.
Objetivos e metodologia
O objetivo principal do trabalho é analisar, a partir dos fundamentos do TBC, em que medida o desenvolvimento da atividade turística indígena na TICV se aproxima ou se relaciona à modalidade do TBC, de modo a conformar o que poderíamos denominar Turismo Indígena de Base Comunitária. Para alcançar este objetivo central se fez necessário
- caracterizar a atividade turística praticada nas aldeias compreendidas pelo estudo, localizadas na TICV;
- contrastar a teoria do TBC com a prática turística na TICV;
- analisar comparativamente os dados etnográficos da prática etnoturística à luz do TBC.
A metodologia utilizada no estudo foi a etnografia multimodal, explorando recursos como observação presencial e digital, além de registros em campo e entrevistas. O corpus empírico mobilizado abrange dados coletados desde 2018, analisados à luz da literatura sobre Turismo de Base Comunitária e sob a perspectiva da antropologia. Esses elementos possibilitaram identificar a estreita relação entre a prática do etnoturismo na TICV e os princípios do TBC, especialmente em aspectos como sustentabilidade, participação comunitária e fortalecimento cultural.
A justificativa para relacionar a atividade turística indígena na TICV com o TBC se baseia no fato de que os estudos em TBC conformam um campo de teoria e de práxis consolidado mundialmente, a partir do qual surgem e se reelaboram constantemente iniciativas no âmbito de políticas públicas para subsidiar e apoiar iniciativas turísticas levadas a cabo por comunidades tradicionais. Nesse sentido, situar as práticas aqui observadas em um quadro mais amplo pode ser benéfico para a conquista de direitos e o acesso a políticas de TBC por estas comunidades.
Fonte: Vanessa Pataxó.
Diante de tal contexto, este trabalho visa contribuir para o estudo do turismo ao incitar uma reflexão no campo da discussão epistemológica e acadêmica relativa à emergência de novos sujeitos e formas de pesquisa científica no campo do turismo. E, do ponto de vista da prática, visibilizar e inspirar formas de gestão não ocidentais no campo do turismo.
O artigo está estruturado da seguinte forma: a primeira seção apresenta o marco teórico; a segunda seção apresenta e discute a metodologia utilizada, destacando os principais aspectos epistemológicos; a terceira seção é destinada à análise e discussão, oportunidade em que são identificadas as principais características da prática do Turismo Indígena de Base Comunitária na TICV e se evidencia o papel do Instituto Pataxó de Etnoturismo da Reserva da Jaqueira (ASPECTUR) como multiplicador da atividade na TICV. A última seção é reservada às considerações finais, onde constatou-se que as práticas comunitárias de autogestão promovem o protagonismo das comunidades indígenas e o desenvolvimento sustentável, semeando condições favoráveis à permanência no território, à manutenção dos modos de vida tradicionais e à preservação ambiental. Conclui-se que as práticas de turismo comunitário nas aldeias Pataxó da TICV representam um modelo de gestão inovador e sustentável, que pode contribuir para ampliar os horizontes epistemológicos dos estudos em Turismo de Base Comunitária, servindo de inspiração para outras comunidades tradicionais no Brasil e no mundo.
Uma demanda crescente
No cenário global tem sido crescente o interesse por experiências turísticas cada vez mais significativas do ponto de vista cultural, ecológico e sustentável. Queiroz (2019) esclarece que a crescente procura por destinos ecológicos e pelo turismo de experiência, nos últimos anos no Brasil e no mundo, criou significativa demanda por destinos ecoturísticos. Considerando que as TIs abrigam uma grande diversidade de ecossistemas e ambientes naturais, esses locais passaram a despertar especial interesse do público. Neste contexto, os povos indígenas passaram a vislumbrar no turismo uma oportunidade de desenvolver uma atividade econômica alinhada aos seus modos tradicionais de vida, no que diz respeito ao fortalecimento cultural e preservação da natureza. Ademais, o turismo indígena passa a ser uma significativa oportunidade para sensibilizar os visitantes quanto à importância das pautas políticas, ambientais e indígenas nessas interações.
A partir das últimas décadas do século XX, o turismo começou a se consolidar como uma prática importante nas Terras Indígenas brasileiras. Inicialmente vinculado ao artesanato e ao contato com pesquisadores, o turismo passou a ser planejado e gerido pelas comunidades locais, potencializando sua função como ferramenta de fortalecimento cultural e de preservação ambiental. Este cenário se alinha ao crescente interesse global por experiências culturais e sustentáveis, com os territórios indígenas oferecendo biodiversidade e ecossistemas atrativos para visitantes interessados em ecoturismo. A criação do Programa Piloto de Ecoturismo em Terras Indígenas pelo Ministério do Meio Ambiente em 1997 e o Manual Indígena de Etnoturismo da Reserva da Jaqueira são exemplos de iniciativas que orientaram o planejamento de atividades turísticas.
Fonte: Alicia Costa.
O turismo indígena nasce de uma perspectiva que, em sua essência, relacionase ao turismo comunitário. Sua prática se contrapõe ao modelo de turismo de massa, impessoal e, acima de tudo, que tem unicamente o lucro como razão maior (Costa, 2020; Silvestre & Fontana, 2023). Com efeito, ao longo das últimas décadas, o turismo promovido por comunidades indígenas tem sido categorizado como turismo étnico, etnoturismo, turismo cultural, etnoecoturismo, turismo indígena, turismo em terra indígena e turismo étnico indígena (Zeppel, 2006; Pereiro, 2013; Souza et al, 2021).
Etnoturismo de base comunitária
No contexto da TICV, destacam-se três aldeias que atuam de forma significativa no etnoturismo: a Reserva da Jaqueira, a Aldeia Nova Coroa e o Centro Cultural Txag’ru Mirawê. A Reserva da Jaqueira, inaugurada em 1998, é um marco pioneiro na prática do etnoturismo no Brasil, oferecendo experiências culturais autênticas e fortalecendo a gestão comunitária. Essa aldeia, assim como as demais mencionadas, promove atividades turísticas com base na autogestão e na sustentabilidade, com ênfase na preservação ambiental e na valorização da cultura Pataxó. Até o início dos anos 2000, a Reserva da Jaqueira, que é gerida por uma associação jurídica constituída e mantida pelos líderes da comunidade local, manteve-se como único empreendimento etnoturístico do território da Coroa Vermelha. Nos últimos dez anos, a prática do turismo vem se expandindo significativamente no território, de modo que, das 15 aldeias Pataxó que integram o território, metade delas já desenvolve atividades etnoturísticas, incluindo aquelas situadas em áreas do território que ainda aguardam pela demarcação. As comunidades também buscam ampliar sua atuação por meio de articulações em rede, como a Rede de Etnoturismo Indígena e a Rede BATUC – Turismo Comunitário da Bahia, além de parcerias com agências de turismo.
As iniciativas de etnoturismo nas aldeias estudadas incluem atividades culturais diversas, como trilhas ecológicas, apresentações de rituais tradicionais, degustação de pratos típicos e venda de artesanato diretamente aos visitantes. Essas atividades não apenas geram renda para as comunidades, mas também promovem a autoestima dos povos Pataxó ao valorizar sua história e tradições. O papel das mulheres também é destacado como central na liderança de projetos etnoturísticos, exemplificado pela atuação de Nitynawã, uma das fundadoras da Reserva da Jaqueira, e de outras líderes nas aldeias Nova Coroa e Txag’ru Mirawê.
A discussão articulada no presente estudo envolve também as questões territoriais e socioeconômicas enfrentadas pelos Pataxó. A luta pela demarcação de territórios e a resistência à exploração neocolonial dos espaços turísticos são aspectos cruciais para assegurar a sustentabilidade e autonomia dessas comunidades. O etnoturismo, nesse contexto, emerge como uma estratégia de (r)existência, permitindo aos Pataxó permanecerem em seus territórios e preservarem seus modos de vida. Muitos saberes, em especial práticas artefatuais tradicionais e os modos de fazer adereços, são transmitidos ainda na infância das mães para as filhas e dos pais para os filhos, sendo considerados verdadeiras heranças familiares (Souza, 2013).
Nesses contextos em que uma multiplicidade de atividades se amalgama nas dinâmicas cotidianas, o etnoturismo se afirma como uma possibilidade de autogestão e conciliação entre modos de vida e trabalho dentro da aldeia, sem que haja necessidade de deslocamento para fora, fortalecendo os vínculos comunitários e laços intergeracionais. Ao mesmo tempo em que fortalecem a sua identidade, a multiplicação desses empreendimentos culturais socialmente justos e politicamente engajados contribuem para o desenvolvimento local, ao tornar o destino mais atrativo neste mercado segmentado do turismo.
O etnoturismo indígena pode ser considerado uma atividade de base comunitária na medida em que se verifica, nas comunidades estudadas, a forte presença dos seguintes aspectos:
- a atividade promove a preservação ambiental e se baseia em práticas sustentáveis;
- a atividade gera renda para toda ou para a maior parte da comunidade envolvida, não somente para poucos indivíduos ou grupos fechados;
- a atividade constitui solo fértil para o florescimento e o fortalecimento cultural;
- a atividade é autogerida de modo autônomo pela própria comunidade.
Num contexto socioeconômico de evidente exploração neocolonizadora dos espaços turísticos indígenas da chamada Costa do Descobrimento, diferentes aldeias Pataxó do Sul da Bahia têm feito emergir projetos autônomos e independentes de turismo comunitário, a exemplo das aldeias mencionadas no presente estudo, localizadas na T.I. Coroa Vermelha, entre outras que o presente estudo não foi capaz de abarcar pelo seu escopo limitado. Fato é que a atividade etnoturística tem se popularizado no Sul da Bahia, inclusive em territórios retomados que ainda aguardam regularização, e cujas comunidades sofrem com a situação de vulnerabilidade e insegurança a qual ficam submetidos, podendo ser compreendida como uma estratégia de (r)existência contemporânea para se poder Viver Sossegado (Costa, 2020). Com efeito, há décadas, os Pataxó se articulam coletivamente e de forma organizada, tanto na esfera pública – política, quanto na privada – familiar e espiritual, para retomar territórios e se manter neles de maneira sustentável, ao mesmo tempo em que promovem a união cada vez mais sólida das suas comunidades e o fortalecimento das suas tradições.
Fonte: Shakira Baião.
Para permanecer de modo sustentável e autônomo na terra retomada, as comunidades da região da chamada Costa do Descobrimento lançam mão de diversas atividades produtivas como a agricultura, piscicultura, a produção de artesanato, a produção de farinha e outros derivados da mandioca, mas, também, tem cada vez mais investido em atividades econômicas empreendedoras, principalmente voltadas para o mercado do turismo: as fábricas e lojas de comercialização de artesanatos, as lojinhas de conveniência e as aldeias que, ao se estruturarem e abrirem suas portas para a visitação turística, se convertem em empreendimentos etnoturísticos.
Ainda não existem estatísticas relativas à quantidade de novos turistas que passam a ter contato com a História e a Cultura Pataxó graças a este recente impulsionamento do Turismo Indígena de Base Comunitária da Coroa Vermelha, e esse fato é um indicativo importante da necessidade de futuras pesquisas no âmbito deste novo mercado que se expande e se multiplica na velocidade da flecha em Coroa Vermelha. Se é verdade que “o futuro é ancestral” (Krenak, 2022), então o futuro do turismo há de ser comunitário. Nesse sentido, aprender com a prática da atividade turística organizada por povos indígenas – a qual, conforme buscamos demonstrar, dado o próprio modo de vida dos povos indígenas, já nasce comunitária e ambientalmente sustentável pelo menos entre o povo Pataxó – pode ser um caminho possível para construirmos o futuro do turismo que queremos.
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